terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Setor elétrico vai tentar acordão com governo

Tendo à frente mais uma usina de incertezas, que vão de novas despesas multibilionárias até o fantasma de racionamento em 2015, associações do setor elétrico pretendem compilar propostas para um “acordão” com o governo em torno de medidas para superar a crise de energia. As sugestões vão ser formuladas, nos próximos dias, por um conjunto de 12 entidades empresariais e levadas em seguida à Casa Civil.

Em linhas gerais, a ideia é repetir duas “soluções negociadas” do passado, que ocorreram em momentos delicados. Para zerar as dívidas em cascata que desorganizavam completamente o segmento, a Lei Eliseu Rezende – assim batizada em homenagem ao então presidente da Eletrobras – promoveu um megaencontro de contas em 1993, que só foi possível graças a aporte de US$ 27 bilhões do Tesouro Nacional.

Em 2001, ano do racionamento, foi firmado o Acordo Geral do Setor Elétrico. Esse acerto normalizou as relações entre os agentes do mercado, que haviam entrado em uma série de disputas entre si, e criou uma “recomposição tarifária” paga pelos consumidores. Nos dois episódios, a volta da normalidade permitiu o engavetamento de várias ações judiciais que estavam travando o funcionamento do setor, como tem ocorrido nos últimos meses.

“A situação de hoje é mais grave. Não temos como suportar o futuro sem um novo grande acordo”, diz o presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), Mário Menel, lembrando que a conta da crise já ultrapassa R$ 100 bilhões desde 2012. Indenizações às empresas que aderiram ao pacote de renovação antecipada das concessões, gastos com o acionamento intensivo das usinas térmicas e a sequência de socorros financeiros às distribuidoras estão na fatura.

Menel coordena o fórum das associações do setor elétrico, composto por 12 entidades, que deverá compilar um conjunto de propostas nesta semana. Um dos pleitos será revisar imediatamente a “garantia física” das hidrelétricas. Na prática, a garantia física é uma espécie de certificado que define quantos megawatts uma usina pode efetivamente vender no mercado, com base na geração média verificada em anos anteriores. Mas esse número não é atualizado desde 2003 e há quem veja nisso uma das raízes da crise atual – as usinas têm produzido, na vida real, menos do que o previsto e abrem um “buraco” permanente na operação do sistema.

O baixo rendimento das hidrelétricas é justamente uma das hipóteses levantadas por especialistas para explicar o acelerado esvaziamento dos reservatórios nos últimos três anos. Apesar de chuvas abaixo do normal, é errado atribuir à estiagem todos os problemas do setor, segundo Luiz Augusto Barroso, diretor da consultoria PSR. “Essa história não cola. No triênio 2012-2014, choveu 88% da média de longo termo. Não foi exatamente bom, mas é apenas o 16º pior registro, em 84 anos de série histórica.”

Em uma apresentação a executivos e investidores na sexta-feira, durante um encontro do setor elétrico em Mata de São João (BA) acompanhado pelo Valor, Barroso fez suas primeiras estimativas sobre as chances de racionamento em 2015. Considerando o uso pleno das térmicas e redução das vazões nos rios federais, a fim de economizar água nos reservatórios, há 19% de risco de racionamento (um déficit de pelo menos 4% da demanda). Foram analisados 1.200 cenários hidrológicos.

Uma das principais diferenças com as simulações do governo, conforme explica Barroso, é que o baixo rendimento das usinas precisa ser levado em conta. Ele só faz uma ressalva importante: “Estamos no início do período úmido e é o pior momento para fazer esse tipo de previsão.” Destaca, no entanto, que em igual período do ano passado as projeções indicavam risco de apenas 6% em 2014. Ou seja, dessa vez a temporada de chuvas começa muito mais pressionada.

O consultor Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel, aponta a repetição de outro problema em 2015. Para ele, as usinas hidrelétricas vão ter uma nova conta de R$ 15 bilhões com o déficit na geração de energia, por causa da queda nos reservatórios. Neste ano, a fatura deve ficar entre R$ 20 bilhões e R$ 25 bilhões. Quando produzem menos eletricidade do que suas obrigações contratuais, precisam recorrer ao mercado de curto prazo para repor o fornecimento. Como os preços atingiram valor recorde nos últimos meses, a conta disparou.

No ano que vem, a despesa das hidrelétricas deve ser amenizada com a redução do valor máximo do megawatt-hora no mercado de curto prazo, que a Aneel reduziu de R$ 822 para R$ 388. Mesmo assim, o déficit na geração das usinas deve corresponder a 8% de tudo o que elas deveriam produzir, segundo Santana. “Haverá uma conta de R$ 15 bilhões, que seria muito maior, se a agência não tivesse feito a mudança.”

Para o ex-diretor, uma das distorções vistas atualmente no setor é que a fatura acumulada pelo déficit hídrico – nos anos de 2014 e 2015 – já supera o valor de mercado das próprias geradoras. “As perspectivas são sombrias.”

Queixando-se da falta de interlocução com o Ministério de Minas e Energia, as associações buscam agora um canal direto com a Casa Civil, mas prometem virar a página das lamentações e dar sua contribuição. “Não adianta chorar o leite derramado. Todos teremos que ceder um pouco para salvar o setor”, diz Menel.

O sócio do BTG Pactual e presidente do conselho da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel), Oderval Duarte, reforça o apelo por mais diálogo entre governo e iniciativa privada. “Mas é fundamental reconhecer que o setor elétrico está doente”, afirma.

Itaipu joga pressão adicional em tarifa
Como se não bastassem todos os esqueletos tarifários que devem sair do armário, os reajustes das contas de luz vão sofrer uma pressão adicional de até quatro pontos percentuais em 2015, por causa da usina binacional de Itaipu. Pelo tratado firmado entre o Brasil e o Paraguai, a Eletrobras compra toda a energia produzida pela hidrelétrica, mas não deve ter suas contas impactadas por isso – nem positiva, nem negativamente. Neste ano, como o esvaziamento dos reservatórios fez as usinas gerarem menos eletricidade do que seus contratos previam, esse déficit provoca um rombo financeiro que é rateado pelo “condomínio” de geradores.

A cada um, cabe uma “cota” da fatura aberta pela compra de energia no mercado de curto prazo. A fatia de Itaipu nesse rateio, que precisa ser desembolsada pela Eletrobras, é estimada pelo banco JP Morgan em R$ 4 bilhões. O consultor Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel, acredita em um patamar semelhante.

Nem toda a conta do déficit hidrológico vai parar nas mãos dos consumidores. Isso só acontece no caso das usinas que tiveram suas concessões renovadas em 2012, pela MP 579, depois convertida na Lei 12.783. Para todas as outras, o risco é do negócio, e fica com as próprias geradoras.

Itaipu tem regras próprias. Individualmente, a usina binacional tem que entregar pelo menos 75 milhões de megawatts-hora todos os anos. Em 2013, quando bateu um recorde de produção, foram 98,6 milhões. Desta vez, ficará novamente acima do mínimo requerido e pode alcançar 91 milhões de megawatts-hora, segundo a assessoria da empresa. O problema é que, mesmo produzindo além do mínimo exigido, ela faz parte do “condomínio” das hidrelétricas e precisa entrar no rateio geral.

A Eletrobras, embora tendo que arcar de imediato com esse custo, tem o direito de repassar a conta aos consumidores de energia. O repasse ocorre na data de aniversário contratual de cada distribuidora de energia. Normalmente, cada bilhão de despesas adicionais no setor elétrico se reflete em um ponto percentual nas tarifas. Nesse caso, não está claro se o adicional tarifário será dividido entre todas as distribuidoras, de modo uniforme. Isso porque apenas 30 das 64 empresas do país, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, recebem parte do suprimento de Itaipu.

Além desse custo, as tarifas de Itaipu ainda vão sofrer o peso da variação cambial, já que são cotadas em dólar.

Contra preço-teto, indústrias podem ir à Justiça
Os grandes consumidores de energia podem dar largada aos questionamentos judiciais contra a mudança no preço-teto da eletricidade no mercado de curto prazo. A queda do valor máximo do megawatt-hora, de R$ 822 para R$ 388, foi aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) na semana passada.

“Essa decisão foi uma canelada no investidor e vamos enfrentar mais um período de judicialização”, afirma o presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), Carlos Faria. De acordo com ele, cinco de seus associados têm pressionado a entidade para entrar na Justiça contra a mudança. Uma definição pela Anace, que reúne indústrias e grandes varejistas, sairá até o fim deste mês. O novo limite do preço de liquidação de diferenças (PLD) começa a valer em janeiro.

Referindo-se à mudança como uma solução conjuntural para atender às distribuidoras, que vão gastar menos com a compra de eletricidade no mercado de curto prazo, Faria vê prejuízos “inexplicáveis” a quem tem apostado no planejamento. Nos últimos meses, segundo o executivo, muitas empresas fecharam contratos de longa duração por mais de R$ 400 por megawatt-hora.

“Imagine a situação de um dirigente de multinacional que explicou ao conselho da empresa as vantagens de estar contratado no longo prazo. Como ele fica agora?”, questiona Faria. Ele ressalta que o custo de ter ficado exposto ao mercado de curto prazo, com a mudança da Aneel, teria sido menor. “Essa empresa está sendo penalizada por ter cumprido à risca as regras do jogo até agora.”

Faria esclarece, no entanto, que o martelo ainda foi batido sobre buscar ou não uma liminar contra a queda do PLD, porque há associados que ainda não tinham fornecimento garantido para 2015 e ficaram satisfeitos com a queda do limite de preços, o que pode gerar discórdia na Anace. (Valor Econômico)
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