sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Seca reabre discussão sobre preço da energia

O preço recorde da energia no mercado de curto prazo reabriu debates acalorados no setor elétrico sobre a possibilidade de mudanças nos cálculos desse valor. As discussões já batem às portas do governo e ocorrem em um momento de estimativas cada vez maiores de gastos para cobrir o uso intensivo das térmicas e o rombo das distribuidoras de energia, que não conseguiram contratar todo o suprimento necessário nos leilões oficiais e ficaram vulneráveis aos preços mais elevados do mercado "spot".

Analistas já afirmam que projeções de despesas entre R$ 15 bilhões e R$ 18 bilhões, neste ano, ficaram defasadas com a queda acentuada dos reservatórios e a dificuldade em enchê-los no restante do período de chuvas. O engenheiro e consultor Humberto Viana Guimarães diz "não ter dúvidas" em calcular gastos acima de R$ 20 bilhões com o acionamento das térmicas. Ele foi justamente um dos primeiros nomes no mercado, ainda em janeiro, a apontar estimativas de despesas superiores a R$ 15 bilhões - hoje amplamente aceitas. O governo, que se recusa a encampar as previsões, tem insistido no argumento de que o orçamento reservado pelo Tesouro Nacional é suficiente. Há R$ 9,8 bilhões disponíveis para 2014.

Em fevereiro, o preço do megawatt-hora no mercado "spot" ficou em R$ 822,83 ao longo de todo o mês, nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Conforme cálculos apresentados ontem a executivos do mercado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o preço-teto deve ser mantido na primeira semana de março. Esse valor é o máximo permitido atualmente pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e superou até mesmo o recorde anterior, de R$ 569,59 por megawatt-hora, que havia sido atingido em 2008.

Seria exagero dizer que há discussões formais e bem estruturadas, no governo, para revisar a metodologia do preço de liquidação de diferenças (PLD). Por enquanto, o que existe são opiniões isoladas, manifestadas em caráter pessoal. É certo, no entanto, que mudanças na forma de cálculo dos valores praticados no mercado de curto prazo - a fim de baixá-los - têm sido defendidas discretamente, nos bastidores, por dirigentes da Aneel e por conselheiros da presidente Dilma Rousseff no setor elétrico.

"O que acontece hoje com o PLD não reflete a situação energética do mundo real", diz um interlocutor de confiança da presidente. Hoje, segundo esse conselheiro de Dilma, o modelo de precificação é excessivamente sensível às chuvas e tem como referência o custo da usina mais cara que esteja sendo acionada em todo o sistema interligado. "Fica seco durante uma semana e o preço dispara. Vem um pé d´água durante três dias e o preço cai pela metade. Mas nada disso quer dizer que haja, de uma hora para outra, escassez ou sobra de energia no sistema", argumenta essa fonte.

Uma das ideias lançadas - e que circula, no governo em caráter informal - é calcular o preço do mercado de curto prazo pelo custo médio de acionamento das usinas. Em vez de arrastar o preço sempre para o custo da térmica mais cara, que contribui com um pequeno punhado de megawatts para um parque gerador de 127 mil MW, essa metodologia teria melhores condições de refletir a situação real do mercado.

Em relatório distribuído a clientes, duas semanas atrás, o banco J.P. Morgan afirmou que "a manipulação dos preços ´spot´ não é uma hipótese remota". Marcos Severine, analista que assina o relatório, lembra os efeitos de uma medida nesse sentido. Ela reduziria os valores desembolsados pelas distribuidoras para repor os volumes de energia descontratada. Esses desembolsos terão que ser pagos pelos consumidores, por meio de reajustes nas tarifas, ou assumidos pelo Tesouro.

Um trio de geradoras estaduais - Cemig, Cesp e Copel - pode ter receitas adicionais de até R$ 7 bilhões neste ano com a venda de energia a preços elevados, segundo cálculos do J.P. Morgan. Elas têm 979 MW de energia sem nenhuma amarra contratual e negociada no mercado "spot".

Luiz Eduardo Barata, presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), responsável pelo cálculo semanal da metodologia de preços, procura tranquilizar o mercado. "Não vejo nenhum espaço para uma mudança neste momento."

O economista Nivalde de Castro, coordenador do grupo de estudos do setor elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem sido um dos especialistas mais ativos em demonstrar a "transferência de renda" causada pela suposta distorção nos preços atuais. De acordo com Castro, os consumidores, ou o Tesouro, acabarão pagando indiretamente uma conta bilionária a esse pequeno grupo de geradoras por causa da queda dos reservatórios, embora o balanço estrutural de demanda e oferta não seja preocupante, na sua visão.

Joísa Campanher Dutra, ex-diretora da Aneel e professora do Centro de Regulação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), prefere nem entrar no mérito da discussão e é radicalmente contra a ideia de falar, neste momento, sobre mudanças no preço do mercado de curto prazo. Para ela, qualquer mudança das regras agora seria mal interpretada pelos investidores, por mexer nas perdas e ganhos de todo o setor.

Segundo a ex-diretora, qualquer economia, ao Tesouro ou aos consumidores, proveniente de uma intervenção no PLD pode virar um tiro pela culatra. "Temos que passar por essa tempestade. Nenhum tipo de aperfeiçoamento pode ser feito no calor dos acontecimentos. Medidas arbitrárias entram na percepção de risco e acabam sendo precificadas pelos investidores", diz Joísa. (Valor Econômico)
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